Cristiane Barbosa França, 40 anos, é uma entusiasta da vida, soube fazer de seu sofrimento trampolim para conquistar satisfação pessoal
Com performance exemplar do interprete Ivo Pessoa, a música ‘Uma vez mais” embalou os corações apaixonados de uma geração. Essa mesma canção marca o ressurgimento de um dos sonhos de Cristiane Barbosa França, ou simplesmente, ‘Cris’ – a dança.
Foi na Rede de Reabilitação Lucy Montoro em São José do Rio Preto que conheceu o poder transformador da dança. Ela que dois anos antes, sofrera uma grave queda fraturando entre a bacia e a coluna e afetando órgão vitais como o intestino e a bexiga.
“Quando eu me machuquei escorregando em um banco da cidade, foi pela junção de vários fatores como a paralisia, a fraqueza nas pernas e porque eu tinha andado demais naquele dia. Mas, a princípio, nada tinha acontecido comigo, pois, eu levantei e fui pra casa normalmente. Entretanto, no outro dia não levantei mais. Eu fui pro hospital, pro Pronto Socorro e não achava o que era a minha dor, onde fiz um Raio X e deu a fratura. Fui encaminhada para o Lucy e lá cheguei de fraldas. Aos poucos foram me reabilitando conseguindo chegar no medicamento ideia pra mim – a morfina”, lembra.
Foi através do fisioterapeuta e professor de dança Guto Rodrigues que Cris pode realizar uma aula de dança. “Foi amor a primeira vista, fiz a primeira aula e me apaixonei”. A sua dedicação, fez com que a administração do hospital liberasse a entrada de seu filho Otávio, de nove anos, para que fizesse o trabalho de dança junto com ela.
“Para irmos a Rio Preto fazemos docinhos de doce de coco e vendemos a R$ 0,70 ou 0,80 o saquinho. Esse dinheiro vai para o cofrinho da viagem e assim ajudar nos custos”.
A recompensa de tantos ensaios fez com que dançassem lindamente a música “Uma vez mais” no aniversário de Rio Preto. “Meu sonho é ter por aqui uma sala pra dança específica e com professor habilitado”.
O COMEÇO
A consciência crítica de Cristiane hoje é fruto de muito sofrimento do passado. E a preocupação de mãe fez que resolvesse um problema de forma inusitada, inclusive para a diretora da escola Marilena Cipriano.
Um dia seu filho chegara em casa chorando e lhe contou que fora ameaçado de apanhar por ela ser cadeirante. “Na hora liguei para Alessandra, um amor de pessoa, que prontamente abriu a escola para que o psicólogo Júlio Ribeiro, o presidente da Adefipe Antônio Carlos Rosendo e eu fizesse um trabalho na escolas. Mostramos que ser deficiente é igual a qualquer pessoa, mostrei fotos da dança. Hoje eu sou conhecida como mãe do Otávio”, conta com sozinho no rosto. E complementa: “Otávio a partir daquele momento é tratado muito bem. Os meninos que queria bater nele, hoje o defendem”.
Esse trabalho teve tamanha repercussão que foi reproduzido nas escolas do bairro do Pereirinha e na Mário Sabino onde estudara. “A escola Mário Sabino com certeza mexe muito comigo porque eu sofri todas as atrocidades que uma criança não podia sofrer. Com 11 anos eu comecei a estudar e os professores tentavam me proteger ao máximo, mas quatro crianças me machucavam muito, fazendo eu parar na quarta série”.
INFÂNCIA
Cristiane com quatro meses teve a poliomielite e aos sete anos engatinhava como um bebê. “Até aos três meses de vida eu era uma criança perfeita, mas quando me aplicaram o remédio ele não foi eficaz, mas paralisou o avanço da doença”.
Desde os 4 meses de idade, através do aconselhamento médico de João D´elia, Cristiane operou muitas vez as pernas do joelho pra baixo. “Atualmente a diferença é muito pouco, mas graças as intervenções cirúrgicas. Hoje meu pé é certinho e minha perna tem pouca diferença”.
Para custear o tratamento a mãe de Cris dependia de ajuda, muitas vezes da antiga transportadora Pirani, que as levavam a São Paulo, mais precisamente no Largo do Arouche, ou dependia de parentes.”Minha mãe me tratou sozinha, meu pai era alcoólatra e me sentia impotente, pois, via minha mãe apanhar do pai e não podia fazer nada”.
Aos 17 anos começou a trabalhar no Centro Cirúrgico da Santa Casa de Misericórdia de Penápolis mas não pode ficar por muito tempo por não ter oitava série completos. E hoje com 40 anos voltou a estudar no CEEJA para se dedicar a fazer o que mais gosta – atender as pessoas. É secretária da Adefipe (Associação dos Deficientes Físicos de Penápolis). Ela também é mãe de Beatriz e avó de Maria Eduarda.
Carta à Cristiane
O que falar sobre a Cristiane… Ou, como carinhosamente é mais conhecida, “Cris”?!
Hmmm… acho melhor então, falar sobre o que a Cris NÃO é…
A Cris não é gananciosa e nem ociosa. Não é individualista ou amargurada (nem como ser humano tampouco por ser cadeirante).
A Cris não é supérflua. Não é mesquinha. Não é invejosa ou de querer mal a alguém…
A Cris é um exemplo de superação!
A Cris é uma pessoa cujas limitações a própria desconhece e que surpreende cada vez mais aqueles ao seu redor!
Cristiane: menina no sorriso e mulher na desenvoltura.
Cristiane: pessoa nascida meio uma deficiência que a retirou a possibilidade do livre-caminhar… Entretanto, “livre-caminhar” não significa “não-andar”…
A Cris aprendeu desde cedo a ponderar os movimentos do próprio corpo.
Em função não ter tomado quando criança a vacina contra paralisia infantil, adquiriu uma doença que a prejudica até hoje, 40 anos depois, sua locomoção e o equilíbrio corporal. Por tal motivo, Cris precisa da cadeira de rodas para se locomover e se fazer andante.
Não obstante o próprio desconforto físico em tenra idade, Cris, que já se deparava com as mazelas da falta do controle do próprio corpo, conheceu também as horrendas mazelas que permeiam o próprio ser humano: intolerância, desrespeito, preconceito, discriminação…
Cris sofreu por muito tempo bullying na escola (penapolense) onde frequentava o antigo primário, ainda com apenas 8 anos…
Levou tapas, socos, pontapés, era empurrada para cair e não ter forças para se levantar, literalmente, rastejando-se para se esconder de tamanha vergonha… Detalhe: sempre aos olhos e gargalhadas de outras crianças que achavam aquilo tudo uma enorme brincadeira, uma grande festa cuja protagonista era um ser humano já em condição de sofrimento interno…
Enfim…
Na literatura, são comuns casos de vítimas de bullying escolar acometerem-se ao crime, à violência, às drogas ou, no intuito de acabar com o sofrimento que vivenciaram (e vivenciam em suas memórias, como prisioneiros de uma infância conturbada), dar fim a própria vivência…
Todavia, estamos falando da Cristiane! “Menina no sorriso e mulher na desenvoltura”!
Cristiane se afastou da escola. Não suportou as violências físicas e psicológicas que sofria naquele ambiente (bem como a falta de interesse dos gestores da escola solucionar efetivamente a situação) e “optou” por abandonar os estudos mesmo mal sabendo a ler e escrever…
Pessoa com deficiência (e não “deficiente”), marginalizada, com infância sem boas lembranças significativas e praticamente analfabeta… Pouco o futuro poderia reservar para esse sujeito…
Cristiane!
Derivado do nome “Cristina” e que em latim (segundo a “mãe” internet e o “pai” google) significa “ungida pelo Senhor”! Mulher menina forte e centrada! Determinada e ávida por disseminar bons valores!
Verdade ou não, o termo “ungida pelo Senhor” vem bem de encontro com a vida da nossa Cristiane!
Apesar de ter sofrido por sua condição de pessoa com deficiência durante a infância e adolescência (ou acharam mesmo que o bullying acontece apenas nas escolas???), Cris buscou formas de ressignificar sua condição (cadeirante) e tentar, aquilo que dizem, “ser normal”…
Ser normal…
O que vem a “ser normal” em um mundo cada vez mais dinâmico e com novos conceitos/facetas surgindo a cada dia? O que vem a ser normalidade num universo de quase 8 bilhões de singularidades, pensamentos diferentes???
Enfim…
Seja lá qual for o ideal de normalidade internalizado por Cris, a mesma buscou, através do esporte (mais precisamente na natação) uma forma de (re)conquistar a autoestima que muitos lhe tiraram nas brincadeiras sem graça ou nas violências a que Cris foi submetida durante grande parte de sua vida.
Cris passou a nadar. Viu o corpo mudar e a se sentir bem consigo mesma.
Apesar da falta de coordenação motora com as pernas, sentia-se mais segura de sair em público, de se relacionar com outras pessoas, de se olhar no espelho e ver alguém de direitos e socialmente inserido.
O esporte, que entrou na vida de Cris como um meio para que a mesma pudesse dar sentido a própria vida, acabou sendo (talvez o maior de todos) um grande amigo e companheiro.
Um verdadeiro norteador de planos cada vez mais ousados…
Ousadia…
Como definir ousadia em um mundo cada vez mais ousado e robusto? Num sistema de ser e agir que privilegia o “ativo” e patologiza o “passivo”? Em um modo de se viver onde a felicidade é endeusada e a tristeza vista como fraqueza…?!
Enfim…
Seja como for, Cris ousou e ousou mais uma vez: começou a dançar!
Por mais distante que possa parecer os termos “pessoa com deficiência” e “dançar”, Cris uniu esses “opostos” e se tornou bailarina em uma tríplice relação entre bailarina, bailarino e cadeira de rodas!
Cris não nega sua condição.
Começou a fazer dança como atividade terapêutica em Rio Preto no Hospital Lucy Montoro (referência nacional no lidar a reabilitação de pessoas com deficiência).
Porém, por ser a “ungida pelo Senhor”, não se conteve e foi além: passou a praticar mais e mais, cobrar do próprio corpo já surrado e cansado pelo tempo e almejou por limites ainda desconhecidos.
Como um dos resultados, Cris passou a compor uma companhia de dança profissional naquela cidade que se dedicada a todo tipo de “gente às margens” (pessoas com deficiência, idosos, pessoas acima do peso, entre outros).
Em Penápolis, Cris ainda se deu ao luxo de dançar e mostrar um pouco do seu trabalho na dança de salão com um dos maiores professores deste tipo de dança de todo estado, o sempre elegante, Sandro Frabeti.
Está bem para você?!?!
Mas não para a Cris!!!
Em um recente episódio lamentável na escola onde o seu filho estuda (hããã??? Filho??? Como assim??? Sim! F-I-L-H-O! Relação sexual consentida! Prazer! Orgasmo! Deitar em uma cama e se entregar para um homem! Sim! Pessoas com deficiência também podem!!!), a criança, que é negra, sofreu bullying escolar… (
Algo que nos remete a pensar o que vem sendo feito para coibir esse tipo de violência nas escolas do município… (já que algo igual, que aconteceu três décadas atrás, voltou a se repetir nos últimos meses em pleno século XXI…).
O “engraçado” (que de graça só leva no nome) é que o “normal”, o “comportamento padrão”, remeteria a ideia de “criança negra = bullying racial”.
Até ai, “tudo bem”… “aceitável”…
Pasmem: o filho da Cris, com 11 anos idade, sofreu bullying escolar (tendo inclusive que correr para o banheiro feminino para não ser espancado por um grupo de crianças que queriam pegá-lo) meramente, simplesmente, pelo fato de Cris ser pessoa com deficiência… (…)
Ou seja, olha “a Cris” sofrendo bullying novamente…
Como tudo nessa vida que evolui, o bullying, infelizmente, evoluiu junto…
Não basta você ser de uma condição “aceitável” pelos agressores (branco, magro, sem óculos, sexo masculino, hetero, etc).
Caso você tenha algum parente ou amigo com características “bullynescas” (negro, acima do peso, comportamentos introvertidos, entre outros) também será passivo de sofrer violências físicas e-ou psicológicas numa relação desigual de poder.
E viva a democratização do bullying! Tem violência para todo mundo!
Um problema social que ainda é visto como individual e, ao contrário das políticas públicas para enfrentamento do tema, avança ao ponto de “se modernizar” e atingir as redes sociais (vulgo, “facebook”) através do conhecido por cyberbullying!
Enfim…
Mas Cris é a Cristiane. A “ungida pelo Senhor”…
Lamentar? Chorar? Tirar o filho da escola e deixá-lo numa situação de analfabetismo funcional como a própria mãe ficou? Falar com a diretora da escola para esta chamar os pais dos alunos agressores para que elas batam nos filhos tentando corrigir esse comportamento?
Não… Definitivamente esse não é modo de agir de Cristiane perante as mazelas da vida…
E foi a Cris fazer limonada com os limões que lhe deram…
Num gesto… no mínimo de extrema sensibilidade, Cris pediu espaço para a diretora da escola onde seu filho estuda para conversar com todos os alunos daquela instituição de ensino sobre a questão do bullying escolar sendo ela mesma, exemplo dos prejuízos que tal atitude poderia trazer na vida de uma pessoa mesmo quando ela se encontrasse adulta.
Sem citar nomes ou apontar culpados (até porque quem cometeu as agressões contra o seu filho saberia que aquelas palavras era para ele), Cris dialogou, com linguagem simples e sincera, sobre esse assunto com um grande número de crianças.
Não por menos, a própria se emocionou, chorou ao falar do tempo em que ela mesma apanhava e precisava se esconder nos banheiros para não apanhar ainda mais (algo que naquele momento estava ocorrendo com o seu filho…).
Em empatia, solidariedade, amor talvez, muitos alunos daquela escola, com faixa etária entre 7 e 11 anos, acompanharam Cris em seu lamento e lacrimejar buscando se imaginar naquele sofrimento que Cristiane recordava.
O encontro terminou… A conversa se encerrou… Cris passou sua mensagem…
Formou-se logo em seguida ao seu “obrigado” uma enorme fila de crianças querendo abraçá-la, confortá-la em sua dor e mostrar um pouco de compaixão por sua vivência.
Depois de muitas selfs, fotos, agradecimentos e até autógrafos, Cris foi embora daquela escola com a certeza de que conseguiu atingir mais um objetivo em sua vida: mostrar que violência e agressão não educam, não formam pessoas, não determinam caráter…
De tão relevante foi esse seu primeiro encontro com as crianças desta instituição de ensino, Cris iniciou um projeto próprio, sem apoio de nenhum órgão público ou partido político, e passou à ser CONVIDADA por outras escolas municipais para conversar com os seus alunos, crianças em fase de desenvolvimento biopsicossocial, com o intuito de ser exemplo vivo dos malefícios que a prática do bullying escolar pode acarretar na formação de um ser humano.
Ah… Cris também voltou a estudar! Hoje cursa o CEEJA de Penápolis e almeja concursos públicos para ter e dar ao filho uma melhor qualidade de vida!
E, claro, por ser “a Cris” (!), arrumou uma paixão e hoje se encontra amando e namorando uma pessoa que a aceita, a compreende, a entende e aprende com sua parceira!
O que falar sobre a Cris? Bem. Vou pensar e voltarei para te contar…
Julio Ribeiro | Psicólogo